O processo criativo na era de sua reprodutibilidade técnica
Guilherme Silveira
Ao estudar anos de matemática aplicada algumas coisas ficaram claras.
A ilusão de “ser rápido em calcular e em computar”, não é fazer matemática.
Morar na casa 8421 é muito mais interessante que calcular 57*58 de cabeça.
Ser matemático é ser criativo.
Como eu já programava desde bem pequeno, era claro que o computador digital era mais rápido e capaz do que eu. Ele era meu aliado para atingir objetivos maiores.
No meu segundo semestre de matemática meu professor de álgebra linear aplicada, Eduardo Colli levantou uma teoria sobre propriedades de determinados conjuntos em Rˆn. Provei através do computador que para dimensões baixas descritas como 2ˆn+1 tal propriedade era verdadeira. E provei que era falsa para as outras.
A prova não era uma fórmula fechada, mas sim uma prova computacional, algo que o ser humano seria incapaz de efetuar sem o computador digital.
Após me envolver mais com algoritmos e competições, foi nessa intersecção da matemática e computação que me encontrei. Levantar questões matemáticas que eu conseguiria provar através do uso do computador é incrível.
Mas o computador não modela perfeitamente o meu pensamento.
A imperfeição do processo digital não impede sua utilidade prática.
A questão é o que já fazemos há décadas, nos estudos e nas práticas das artes e nas ciências, onde utilizamos ferramentas externas para automatizar nosso processo criativo, é bonito e poderoso. Gilbert Simondon diz que a tecnologia é uma extensão das capacidades humanas, moldando e sendo moldada pela sociedade.
E isso é mais realista do que o romance vendido de que as descobertas científicas e artísticas são frutos de milagres.
Lev Manovich, em The Language of New Media (2001), discute como a cultura digital redefine a criatividade e a produção cultural. Ele mostra que a mídia digital transforma a criatividade, possibilitando novas formas de interatividade e personalização.
Esta perspectiva se alinha com minha visão de que o uso de computadores e algoritmos não só acelera a solução de problemas matemáticos, mas também abre novas possibilidades criativas, ampliando o alcance e a profundidade de nossas explorações intelectuais. E lembro que o ato de criar arte é uma exploração intelectual.
É por isso que reforço: filmes, livros, seriados e novelas ainda tentam nos vender esse romantismo de que o livre arbítrio, a criatividade, a inspiração, a intuição, são elementos humanos incompreensíveis e indescritíveis pela ciência. Que não podem ser reproduzidos.
Modelos imperfeitos
Mas pela própria definição de modelo computacional temos que o computador é capaz de modelar simplificações de processos. Sejam eles livres, criativos, inspiracionais ou intuitivos. São modelos. Imperfeitos.
Mesmo modelos imperfeitos são capazes de encontrar soluções e replicar padrões que o ser humano não consegue. Tal processo não é de hoje. Vem desde que o ser humano é capaz de computar.
Como já proposto por Alan Turing em seu trabalho sobre máquinas computacionais, a capacidade dos computadores de realizar cálculos complexos e resolver problemas matemáticos é uma extensão das capacidades humanas. Não é que o modelo substitui o ser humano, ele resolve seus novos desafios criativos.
Walter Benjamin, em The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction (1935), argumenta que a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica muda a própria natureza da arte.
Adaptando isso ao contexto atual, o processo criativo na era de sua reprodutibilidade técnica muda a própria natureza do processo criativo.
Em meu trabalho, vejo como a capacidade de replicar processos e soluções através do computador não só torna o conhecimento mais acessível, mas também desafia nossas concepções tradicionais de originalidade e inovação.
As tecnologias digitais promovem novas formas de subjetividade. No contexto atual, a nova definição de sujeito é a de um sujeito que simbioticamente cria, parte humano, parte inteligência artificial.
O computador digital, em sua brutalidade gelada, nos tira desse mundo romântico de algo “não copiável” e por isso sentimos tanta dificuldade em aceitar que modelos podem ser úteis, mesmo que - como nós - imperfeitos.
Guilherme Silveira
Referências
Turing, A. M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59(236), 433-460. https://doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433
Manovich, L. (2001). The language of new media. MIT Press.
Benjamin, W. (1935). The work of art in the age of mechanical reproduction. In H. Arendt (Ed.), Illuminations (pp. 217-251).