Tutores de IA podem ser ruins
Guilherme Silveira
Ao assistir ao vídeo de Khan ensinando a IA a ensinar seu filho, a primeira reação é pensar na performance. O vídeo foi de alguma forma ensaiado. Não foi um problema aleatório escolhido no último instante de um assunto que nem o apresentador (pai) e estudante (filho) estavam despreparados.
Como pai, queria eu que todos meus filhos já nascessem eloquentes como o filho do Khan. Imagina como seria fácil dar aula para meus filhos que sabem onde estão e entendem seus próximos passos. Nas salas de aulas de vocês quantas crianças já se expressam dessa forma? Quantas performam dessa forma sem ser no teatro.
A teoria da performance explica que todas as interações sociais e ações podem ser vistas como performances, onde os indivíduos encenam papéis para comunicar significados e influenciar a percepção dos outros.
A ferramenta claramente ajuda um aluno que está nesse momento de vida. Mas educadores sabem que isso é um momento, não é o princípio. E um aluno que está nesse momento de aprendizado provavelmente se beneficiaria de diversas formas de aprendizado.
Isso é um erro comum de pensadores de educação que vem de escolas de elite com um viés que todos tiveram as mesmas oportunidades que eles.
Todos nós educadores de chão de sala temos um desafio anterior que é de fazer um aluno se compreender no universo que está explorando as soluções.
Existe um professor escondido
Um professor sem cuidados pedagógicos e uma ferramenta que não obedeceu.
O prompt inicial que dita a metodologia de ensino foi inserida pelo Khan e se limita a um pedido de scaffolding: “faça perguntas, não dê a resposta”.
E o diálogo segue:
- IA: Qual é a hipotenusa.
- Criança: Eu acho que é essa.
- IA: Não. Hipotenusa é o maior lado do triângulo.
A IA deu a resposta! Foi contra o pedido. Não ensinou. Ela lecionou. A IA introduziu infinitos professores chatos (Prof Boring) para o mundo.
A ferramenta claramente adota uma abordagem de scaffolding de 1976, que é positiva, induzida pelo mentor por trás dos panos: o pai.
Isso nos leva a discussão que o método de ensino da inteligência artificial está restrito a qualidade de sua entrada: do mentor inicial.
E a qualidade desse prompt é ruim. É visível na qualidade da saída. A inteligência artificial entrega de forma lecionada que “hipotenusa é o maior lado do triângulo”. Não há analogia. Não há construtivismo. Não há construcionismo. O método de ensino é uma palestra do GPT para o aluno, usando scaffolding.
Nós, educadores de chão de sala, sabemos que isso não é suficiente. Arrisco até dizer que para o aluno que já reflete sobre sua situação da forma que o filho de Khan reflete, mesmo sem a ferramenta seria capaz de resolver tal problema consultando um livro teórico (uma palestra escrita) sobre o assunto.
Sem desdizer potencial. Acho a interface de voz incrível mas o maior desafio nosso ainda me parece ser anterior.
Como anos atrás eu dizia “conteúdo é fácil fazer, conteúdo bom continua difícil”. A mesma coisa ainda vale para as IAs em educação.
Tem potencial
O efeito de Matheus (a vantagem acumulada, 1986) aplicado a tecnologias educacionais diz que uma nova tecnologia vai beneficiar desproporcionalmente mais aquelas pessoas que já são beneficiadas pelo sistema atual da sociedade.
Pode ser por isso que tantas chamadas de tecnologias de educação do passado que diziam “revolucionar e equizar” a educação não funcionaram. A disrupção prometida por ícones de tecnologia não cumpre a promessa da equidade conforme mostra Justin Reich em seu livro Failure to Disrupt.
Quem tem mais acesso, tem acesso antes e melhor, tem uma base melhor e por isso se beneficia mais.
O exemplo mais básico disso é que o preço do Chat-GPT é o mesmo nos Estados Unidos e no Brasil. O estudante brasileiro que quiser utilizar a mesma versão que o estudante americano tem que ser mais rico. Ponto. Não há discussão. A prometida equidade afunda.
Não quer dizer que não é um avanço ou que não é uma tecnologia boa. Mas não é a promessa que os pensadores futurologistas dizem. Tais pensadores já prometeram inúmeras vezes. “Agora vai”.
Nós, educadores de chão de sala não nos surpreendemos com a não transformação.
Aposto no potencial e uso IA no meu dia a dia das mais diversas formas. Mas a forma superficial que ela é apresentada vai criar uma geração de ferramentas de qualidade duvidosa.
Meu trabalho e de minha equipe é de criar tutores bons. E isso exige mais do que inteligência artificial. Exige professores bons por trás de inteligência artificial boa.
Como diz Reich, tecnologia sozinha não vai salvar a educação, ao contrário do que os líderes de pensamento, distantes do chão de aula, insistem.
Guilherme Silveira
Referências:
Wood, D., Bruner, J. S., & Ross, G. (1976). The role of tutoring in problem-solving. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 17(2), 89-100. https://doi.org/10.1111/j.1469-7610.1976.tb00381.x
Stanovich, K. E. (1986). Matthew effects in reading: Some consequences of individual differences in the acquisition of literacy. Reading Research Quarterly, 21(4), 360-407. https://doi.org/10.1598/RRQ.21.4.1
Reich, J. (2020). Failure to disrupt: Why technology alone can’t transform education. Harvard University Press.
Carlson, M. (2004). Performance: A critical introduction. Routledge.